- Um longo suspiro abafou o medo que se instalava em Nahyra Schwanke, então com 28 anos, ao segurar pela primeira vez o volante de um F-600. Sob os olhares desconfiados do proprietário da concessionária, que acabara de vender o caminhão a ela, e do funcionário destacado para acompanhá-la até a rodovia mais próxima, Nahyra demonstrou a mesma determinação com a qual dirigia o trator da família e as caminhonetes dos amigos agricultores no interior de Não-Me-Toque, no norte do Estado.
- Era março de 1959, como ela recorda. Ao lado da filha Saleti, nove anos, que havia escolhido o veículo na cor marfim, Nahyra estava prestes a iniciar o percurso de 200 quilômetros entre a sede da loja, em Encantado, no Vale do Taquari, e a casa dos pais. O roncar do motor servia de trilha sonora para o começo de uma nova vida: a partir daquele momento, a gaúcha nunca mais tiraria os olhos azuis da estrada.
- O caminho não tinha asfalto, era de terra e estreito. Fui devagarzinho e, em silêncio, limpando as lágrimas de medo e emoção. Andamos naquela estrada de terra e curvas. Era preciso chegar bem. E chegamos – lembra Nahyra.
- A única herdeira de um dono de salão de baile e de uma pequena comerciante apaixonou-se pela direção ainda na infância, quando o pai construiu um arado menor especialmente para ela trabalhar na roça. Aos 15, já conduzindo carroças, a jovem Nahyra casou-se. Foi mãe aos 20. No ano seguinte, separou-se. Com apoio da família, criou Saleti sozinha e enfrentou os olhares tortos de quem duvidava de sua força. Sem titubear, assumiu ao lado do pai, Rodolfo, as entregas de manteiga, ovos, galinhas e açúcar. Iam de carroça até Carazinho. Quando comprou o caminhão em vez da caminhonete que os pais haviam pedido, Nahyra não imaginava que um dia seria considerada a mais experiente caminhoneira do Brasil. Às vésperas de completar 60 anos como motorista profissional, ela ainda conduz caminhões com a mesma paixão que a levou a optar pelo veículo na loja de Encantado.
- Comecei por necessidade mesmo. Tinha que me virar porque era acostumada na roça. Meus pais sabiam que eu aceitei aquele serviço pela minha filha. Mas, em pouco tempo, me apaixonei pelo meu trabalho – conta.
- A carteira de motorista profissional, confeccionada dois meses depois de adquirir o veículo, é guardada por Nahyra como relíquia, uma espécie de diploma da caminhoneira. Nos primeiros meses com o F-600, ela circulou apenas na rota Não-Me-Toque/Carazinho/Passo Fundo, fazendo o transporte dos mantimentos vendidos pela família. As viagens mais longas tiveram início menos de um ano depois, quando passou a enfrentar sozinha a BR-386 até Porto Alegre:
- A perninha tremia de medo e cuidado. Nem sabia o que era asfalto. Os outros caminhoneiros diziam que tudo, um dia, seria como uma calçada. Comecei levando cargas de milho e de trigo até Porto Alegre. Fui aumentando os fretes para cá e para lá, até começar a sair do Estado.
- Como não podia ficar mais tempo com Saleti, Nahyra, em acordo com os pais, optou por colocar a filha num colégio interno particular, em Carazinho, comprometendo-se a custear os estudos com mais trabalho. Na tentativa de aumentar a própria renda, ela ampliou a distância das viagens.
- Quando achava que estava perdida na estrada, chorava muito porque estava só. Me acalmava olhando o mapa e pensava na importância daquele dinheiro para formar minha filha – recorda Nahyra, que estudou até o 3º ano do Ensino Fundamental.
- Na estreia rumo a Santa Catarina, ao Paraná e a São Paulo, um problema foi contornado com o ajuda do delegado da cidade. Como faltavam semanas para renovar o emplacamento do caminhão, a delegacia expediu uma carta de recomendação avisando às autoridades que o veículo de Nahyra teria o emplacamento renovado no retorno a Não-Me-Toque. Detalhe: na carta, o delegado informou que ela era viúva, porque ser desquitada poderia lhe causar ainda mais dor de cabeça entre os colegas de profissão.
- Enfrentei de tudo na estrada. A maioria dos caminhoneiros só se aproximava para saber coisas do caminhão. Mas havia outros que eram bobalhões. Perguntavam se eu queria um marido. Respondia dizendo que o meu casamento era este aqui (aponta para o caminhão estacionado em frente à casa da família) – diz Nahyra.
- Dona de uma memória sempre fresca, a caminhoneira lembra aos risos o período em que dirigiu um FeNeMê de marcha cruzada – como ela o identifica –, cuja cabine era tão quente que fazia o calor subir pelas costas. A marcha do veículo só engrenava no tempo exato de giro do motor. Por exigir força nas alavancas principal e de seleção, Nahyra era obrigada, na maior parte das vezes, a usar as duas mãos para as trocas simultâneas.
- Os braços acabavam se cruzando. Para carregar 12 toneladas, descia a Serra em segunda marcha, sem deixar embalar para não esquentar o veículo:
- Se pisasse duas vezes, olhava pelo retrovisor e via a fumaceira. Sempre andei devagar, mas com ele circulava quase parando. Se viesse um motorista apressado, dava um jeito de abrir e deixar passar. Talvez, por isso, nunca tenha batido e nunca ninguém bateu no meu caminhão.
- Mais confiante na direção, Nahyra passou a aceitar cargas vivas. Porcos, por exemplo, eram levados de Santa Rosa até São Paulo.
- Para não perder nenhum animal ao longo da viagem de mais 1,2 mil quilômetros, a caminhoneira fazia apenas uma parada em Lages (SC), onde aproveitava para banhar os bichos e descansar algumas horas, antes de seguir.
- Dormir, inclusive, tornou-se momento de luxo para ela. Ao longo de quase seis décadas, jamais ficou em hotéis na beira da estrada para economizar todos os centavos que podia.
- O sono era dentro da cabine. Por passar tanto tempo distante, fez casa no caminhão. Ostentava flores no painel e no vidro dianteiro e recheava as paredes com quadros religiosos. Devota de Nossa Senhora Aparecida, ela mandou construir na década de 1970 uma gruta em homenagem à santa nas margens da RS-422, na localidade de Vila Deodoro, em Venâncio Aires, como forma de agradecimento por jamais ter sofrido um acidente na rota considerada uma das mais perigosas entre as décadas de 1960 e 1970. Até hoje, a obra é cuidada pela própria comunidade – que reconhece Nahyra como a fundadora da gruta.
- Turista na casa da família em Não-Me-Toque, ela passava até cinco meses transportando cargas de cerveja entre São Paulo e as capitais nordestinas. Nesses longos períodos, se comunicava por cartas com a família. Apesar de percorrer todo o litoral brasileiro, a caminhoneira nunca colocou os pés no mar enquanto trabalhava. Não tinha tempo e, principalmente, temia ser julgada por estar sozinha.
- Quando voltava para rever a filha, se preparava psicologicamente para não demonstrar sinais de tristeza ou cansaço. Na frente de Saleti, mantinha o rosto firme enquanto a menina chorava pedindo para ficar com a mãe. Nahyra desabava em lágrimas depois de entrar no caminhão e seguir rumo a mais uma viagem. Saleti só viajava com a mãe nas férias escolares.
- A saudade era grande, mas a estrada me ensinou tudo e me abriu os olhos. Aprendi até a passar fome ao volante. Fiz muito amigos e tenho alguns até hoje. Quando não tinha dinheiro para o óleo, os postos me faziam fiado e, na volta, sempre pagava. Ganhei a confiança de todos por ser honesta – afirma, orgulhosa.
- Minha mãe estava à frente de seu tempo e é o meu maior exemplo. Ela sofreu muito, mas jamais se entregou. Se hoje tenho uma profissão, devo a ela – diz a hoje advogada Saleti, emocionada.
- De tanto rodar pelas estradas do Brasil, Nahyra tornou-se conhecida em boa parte do mundo. Foi homenageada pelas maiores fabricantes mundiais de caminhões, tornou-se tema de reportagem em jornais e canais de TV da Alemanha, França, Espanha, Noruega e foi entrevistada por Jô Soares, no final da década de 1990. Até os organizadores do Guinness Book procuraram a família para confirmar Nahyra como a caminhoneira mais velha em atividade no mundo. O recorde não teria sido reconhecido porque a equipe do Guinness não veio ao Brasil. Na cidade ou no Estado onde Nahyra nasceu, porém, ela jamais recebeu qualquer tipo de homenagem ou reconhecimento.
- Há dois anos, uma úlcera na perna direita de Nahyra distanciou a caminhoneira do volante. Mesmo com a ferida ainda aberta, ela realizou uma viagem até Rio Grande em 2015, acompanhada de outro caminhoneiro. Desde então, foi obrigada pelos médicos a abandonar longas distâncias. Ao sentir-se triste, pede para dirigir o caminhão extrapesado Mercedes-Benz Axor 2536, comprado há três anos para transportar uma carreta de três eixos. Volta e meia, quando a perna não está inchada, ela pega a carreta e dá umas voltas nas vias da cidade de 15 mil habitantes e na RS-142, só para matar a saudade da profissão. Temendo perder a carteira de habilitação, no momento mais crítico da úlcera, Nahyra negou-se a assinar a própria aposentadoria por invalidez. Tinha a certeza de que voltaria a viajar.
- Na semana passada, a convite da reportagem, voltou ao volante. Até o semblante de quem se recupera de uma longa jornada médica desapareceu, dando lugar ao olhar focado da estradeira. Em poucos minutos, abriu um largo sorriso de satisfação e seguiu pela rodovia, como se jamais tivesse parado de andar no veículo automático, que traz na placa o ano do nascimento da caminhoneira.
- Isso aqui é a minha vida. Amo este caminhão e vou voltar a andar longas distâncias. Deixa só eu me ajeitar – garantiu ao volante.
- Em casa, em meio aos gatos e cães que divide com Saleti, Nahyra não perdeu o hábito de dormir menos de seis horas diárias. Depois de tantos anos descansando em postos de gasolina, ela acostumou-se a fechar os olhos só depois das 2h da madrugada. Durante o dia, passa as horas olhando pela janela a grande paixão estacionada na rua. As marcas das viagens estão por toda parte, de fotos em cidades turísticas, como o Rio de Janeiro, a bibelôs para a família ou recebidos das concessionárias onde comprava os veículos. Uma placa de caminhão identificada com o próprio nome é o presente mais recente que ganhou de uma fábrica de borrachas para a qual fez transporte durante anos.
- Na estante da sala, Nahyra mantém uma coleção de miniaturas de carretas dirigidas por ela ao longo da vida. Sentada na cadeira favorita, costuma segurar aquele que lembra o caminhão mais recente. O suspiro vem profundo e os olhos azuis marejam. Cuidadosamente, ajeita o caminhãozinho sobre a perna esquerda, alisa a cabine e começa a fazer movimentos com ele para frente e para trás, imitando o andar do veículo. Em silêncio, fixa o olhar no deslizar do brinquedo. É como se voltasse às estradas empoeiradas e à montanha-russa de emoções vivida em milhares de quilômetros de solidão.