- Os primeiros capítulos desta história se desenvolveram
durante o Estado Novo, período ditatorial do primeiro governo de Getúlio
Vargas. Tiveram início, mais precisamente, em outubro de 1938, através da
portaria do Ministério da Viação e Obras Públicas nomeando o engenheiro
aeronáutico Antônio Guedes Muniz para “estudar e propor os meios para o
estabelecimento de uma fábrica de motores de avião” no país. Embora a decisão
tenha sido rápida, já em 1940 sendo liberada a parcela de recursos destinada ao
detalhamento do projeto, o início da Guerra retardou o processo, especialmente
as negociações com a norte-americana Wright, empresa escolhida para fornecer a
tecnologia dos motores aeronáuticos. A questão só foi equacionada em 1943,
durante o encontro entre Vargas e o presidente dos EUA, quando foi barganhada a
entrada do Brasil na Guerra, junto dos “Aliados”, em troca do apoio
norte-americano ao reequipamento das Forças Armadas e à implantação da
Companhia Siderúrgica Nacional e da FNM: no bojo da discussão estava o aval à
fabricação local dos motores Wright, operação coincidentemente de interesse dos
EUA, em função da vantagem de dispor de um fornecedor de motores aeronáuticos
localizado em área segura, distante da Europa e Ásia conflagradas.
Um país agrário fabricando motores de aviões?
- A FNM nasceu, assim, sob a égide militar: o perímetro onde
foi instalada foi considerado área de segurança nacional e a ela foi aplicado o
Regulamento das Forças Armadas. Seus trabalhadores receberiam certificado de
serviço militar, significando, portanto, serem operários “incorporados”; o
abandono do emprego era considerado deserção. O projeto aprovado pelo governo
era ambicioso, prevendo a instalação de três indústrias contíguas: a fábrica de
motores aeronáuticos (FNM), a Fábrica Nacional de Tratores (cujos planos
chegaram a ser preparados ainda antes do final da Guerra, porém não
implantados) e a Fábrica Nacional de Aviões de Transporte. Além do papel
simbólico que o empreendimento representava – uma indústria avançada num país
atrasado tecnologicamente – as três unidades se pretendiam (bem de acordo com o
discurso ideológico parafascista do primeiro governo Vargas) uma “escola de
formação do trabalhador brasileiro” e um importante instrumento para a criação
do “homem novo”.
- Dirigida pelo (já então Brigadeiro) Guedes Muniz, o
empreendimento foi concebido para servir de modelo do que seria um projeto
nacional de cidade Industrial autosustentada – a “Cidade dos Motores”. Nela, em
torno do parque industrial (com as principais seções instaladas no subsolo, com
ar condicionado e iluminação artificial, protegendo-as de remotos bombardeios)
seriam construídas vilas habitacionais para “vinte a vinte e cinco mil
habitantes“, com todos os serviços necessários à vida urbana (escola,
assistência médica, comércio, igreja, clubes). Em complemento, um cinturão
agropecuário, administrado pela própria empresa, supriria todas as necessidades
alimentares dos trabalhadores e suas famílias. Conforme palavras do Brigadeiro,
na “Cidade dos Motores” “não poderão viver a miséria, a fome, as doenças que a
ciência sabe como destruir; (…) [ali] nenhum intermediário existe ou existirá
entre a galinha e o consumidor, entre a vaca e a manteiga, entre o porco e a
banha“.
- Em escala menor, o projeto foi efetivamente concretizado,
inclusive a área rural anexa. Dada a incipiência da indústria metalmecânica
brasileira da época, e conseqüentemente a baixa disponibilidade de mão-de-obra
especializada, foi lenta a formação do quadro de pessoal. Os operários mais
capacitados foram encontrados no Arsenal da Marinha e na Light, ambos no Rio de
Janeiro; um contingente importante, de onde sairiam muitos mestres nas duas
décadas seguintes, veio das Escolas Técnicas das capitais nordestinas; o
restante teve que ser formado no dia-a-dia da prática. Em 1944, o Brigadeiro
podia anunciar: “já possuímos hoje excelentes operadores, construindo peças da
mais alta precisão, e que antes eram sapateiros, açougueiros ou empregados de
balcão“. Foi neste quadro que, em 16 de abril daquele ano, dia do aniversário
de Vargas, a FNM colocou em operação suas primeiras máquinas. Só em 1946, no
entanto, finda a Guerra, a fábrica entrou em regime e completou seu primeiro
motor, um Wright Whirlwind radial de nove cilindros e 450 cv.
- O fim da Guerra veio acompanhado do fim da ditadura de
Vargas. Para a FNM foi um longo período de crise e indefinições, causado por
uma conjunção de fatores. Com a desmobilização, grande quantidade de material
bélico foi disponibilizada a preço simbólico pelos EUA. Perdida a (já por si
reduzida) chance de comercialização externa dos seus motores aeronáuticos, a
empresa constatou estar a FAB abarrotada de unidades novas em seu estoque,
vendo assim desaparecer também o mercado interno. A luta foi igualmente dura na
frente política; a base de apoio parlamentar do novo governo, assumidamente
liberal, desencadeou campanha pelo encerramento da fábrica. Ainda no governo
transitório, antes da posse do novo presidente, a empresa foi transformada em
Sociedade Anônima, segundo o novo discurso oficial de reduzir o papel do Estado
na economia; a produção de motores foi suspensa e os investimentos “sociais”
quase eliminados, atingindo frontalmente o sonho da “Cidade dos Motores”. Em
julho de 1946 a fábrica foi colocada à venda, sem encontrar compradores.
FNM D-7300, o primeiro caminhão fabricado em série no
Brasil.
- A pressão da oposição e da maioria da opinião pública,
contudo, que viam na sobrevivência da FNM um fator de afirmação da soberania
nacional, conseguiram mantê-la em operação, ainda que sem foco definido. Foi um
triênio em que se tentou de tudo: da revisão de motores à produção de fusos
para fiação, geladeiras e bicicletas, passando pela proposta de montagem de
jipes Willys e caminhões Mack (neste caso, a empresa norte-americana exigiu o
controle do capital da FNM) e o fornecimento de dez mil tratores para o
Ministério da Agricultura; destes, que receberam o código MSTM, chegou a ser
construído e testado um protótipo, nos EUA, segundo projeto da própria empresa.
Projetado pela FNM, o protótipo do trator MSTM foi uma das tentativas de sobrevivência da empresa no pós-guerra. Fonte da foto: Eduardo Nazareth Paiva
- Empresa pioneira, em paralelo com a produção de caminhões a
FNM também fabricava peças para suprir o mercado de reposição, inclusive da
concorrência (forneceu, dentre outras, para a Chevrolet, Ford e Willys); além
disso, desempenhou importante papel na formação do parque nacional de
autopeças, prestando assistência técnica (e até mesmo financeira) à nascente
indústria nacional de componentes.
- Na primeira metade da década de 50 a empresa
marcou presença em mais três iniciativas ligadas ao setor automotivo: em 1951,
participou da construção do protótipo do Pinar, primeiro automóvel
integralmente projetado no país; em 1954, mais uma vez ensaiou a fabricação de
tratores, agora de origem Fiat (cerca de mil foram importados pela FNM, aos
quais foram aplicados alguns componentes nacionais, mas a experiência se resumiu
a isto); finalmente, em 1955, desenvolveu com a Massari o projeto do
“papa-filas” – reboque com carroceria de ônibus, para 220 passageiros, acoplado
a um cavalo-mecânico –,ingênua proposta de solução dos críticos problemas de
transporte urbano das capitais brasileiras.
Tratores Fiat montados pela FNM entre 1954 e 1955. Fonte da foto: Eduardo Nazareth Paiva